Tutorial comentado sobre “como se tornar um hacker”

Há muito tempo li, em uma revista chamada “Freesoft”, uma excelente matéria (de 1998) cujo título era “Como se tornar um hacker”. Incrível como um texto tão antigo sobre esse assunto ainda seja válido.
Eu vou comentar esse texto, trecho por trecho, abaixo. Em azul são as partes do artigo e, logo abaixo, alguns comentários meus. Também vou procurar estender as informações aí contidas para outras coisas que vão além do propósito do artigo, tentando fazer “analogias”, sempre que possível.
Na verdade, daria para substituir o termo “hacker” por “mais inteligente”, ou “alguém melhor”, ou qualquer coisa nesse sentido.
O texto (em azul) é uma tradução do original em inglês escrito por Eric S. Raymond.

Por que esse documento?
         Como editor do Jargon File,  recebo muitos pedidos por e-mail de entusiasmados iniciantes, perguntando (de fato) "como eu posso aprender a ser um grande hacker?". Estranhamente, parece que não existem FAQs ou documentos na Web que se refiram a essa importante questão, então aqui está o meu.
Atualmente existem vários “tutoriais” disponíveis, mas esse aí ainda é de longe o melhor.
O que é um hacker?
         O Jargon File contém um monte de definições do termo "hacker", a maioria delas tendo a ver com aptidão técnica e um prazer em resolver problemas e superar limites. Se você quer saber como se tornar um hacker, entretanto, apenas duas são realmente relevantes.
Existe uma comunidade, uma cultura compartilhada, de programadores experts e gurus da rede cuja história remonta a décadas atrás, desde os primeiros minicomputadores de tempo compartilhado e os primeiros experimentos na ARPAnet. Os membros dessa cultura deram origem ao termo "hacker". Hackers construíram a Internet. Hackers fizeram do sistema operacional Unix o que ele é hoje. Hackers mantêm a Usenet. Hackers fazem a World Wide Web funcionar. Se você é parte desta cultura, se você contribuiu a ela e outras pessoas o chamam de hacker, você é um hacker.
         Eu não faço parte dessa cultura, mas estou tentando aprender alguma coisa de programação – por conta própria – e talvez algum dia possa dar alguma contribuição a essa “comunidade”.
         A mentalidade hacker não é confinada a esta cultura do hacker-de-software. Há pessoas que aplicam a atitude hacker em outras coisas, como eletrônica ou música - na verdade, você pode encontrá-la nos níveis mais altos de qualquer ciência ou arte. Hackers de software reconhecem esses espíritos aparentados de outros lugares e podem chamá-los de "hackers" também - e alguns alegam que a natureza hacker é realmente independente da mídia particular em que o hacker trabalha. Mas no restante deste documento, nos concentraremos nas habilidades e dos hackers de software, e nas tradições da cultura compartilhada que deu origem ao termo ‘hacker’.
Essa é a mentalidade dos que possuem altos níveis de conhecimento em qualquer coisa, ou potencial para adquiri-lo.
         Existe outro grupo de pessoas que se dizem hackers, mas não são. São pessoas (adolescentes do sexo masculino, na maioria) que se divertem invadindo computadores e fraudando o sistema telefônico. Hackers de verdade chamam essas pessoas de "crackers", e não têm nada a ver com eles. Hackers de verdade consideram os crackers preguiçosos, irresponsáveis, não muito espertos, e não querem nem saber deles. E alegam que ser capaz de quebrar sistemas de segurança torna alguém hacker tanto quanto fazer ligação direta em carros torna alguém um engenheiro de automóveis. Infelizmente, muitos jornalistas e escritores foram levados a usar, erroneamente, a palavra "hacker" para descrever crackers; isso é muito irritante para os hackers de verdade.
         Aqui começa a ser apresentado um dos objetivos principais do artigo: deixar claro que “hackers” não são aquilo que as pessoas normalmente pensam: bandidos anônimos que invadem sites, desviam dinheiro de contas bancárias ficando impunes, entre outras coisas do tipo. Quem faz dessas coisas são os “crackers” referidos acima. Foi uma excelente comparação essa da “ligação direta”: é uma coisa qualquer um pode aprender a fazer, sem que seja necessário nenhum estudo específico, e é algo geralmente usado por criminosos (no caso, ladrões de automóveis). Assim como as coisas dos “crackers”: eles usam programas (keyloggers, trojans, etc), táticas como, por exemplo, responder à pergunta de redefinição de senha de e-mail de outra pessoa para se apoderar de sua conta (se bem que isso requer muita ingenuidade da vítima), etc. Enfim, coisas simples de fazer e que não exigem saber programação.
Curiosidade: a palavra hacker em português traduz-se como "cabouqueiro" que, segundo o dicionário on-line de português, significa "quem trabalha nas minas; escavador". Já cracker significa "biscoito" (sim, aquela massa de farinha, açúcar e ovos, cozida ao forno).
A diferença básica é esta: hackers constroem coisas, crackers as destroem.
E também, principalmente, há a diferença do nível de conhecimento, estudo, esforço, etc...
Se você quer ser um hacker, continue lendo. Se você quer ser um cracker, vá ler o newsgroup alt.2600 e se prepare para a prisão depois de descobrir que você não é tão esperto quanto pensa. E isso é tudo que eu digo sobre crackers.
         Eu até removi o link que havia sobre o “alt.2600”, não por estar bem desatualizado, mas porque alguém pode querer ir lá “aprender” alguma coisa...

A Atitude hacker
         Hackers resolvem problemas e constroem coisas, e acreditam na liberdade e na ajuda mútua voluntária. Para ser aceito como um hacker, você tem que se comportar de acordo com essa atitude. E para se comportar de acordo com essa atitude, você tem que realmente acreditar nessa atitude.
Mas se você acha que cultivar a atitude hacker é somente um meio para ganhar aceitação na cultura, está perdendo o principal. Tornar-se o tipo de pessoa que acredita nessas coisas é importante para você - para ajudá-lo a aprender e manter-se motivado. Assim como em todas as artes criativas, o modo mais efetivo para se tornar um mestre é imitar a mentalidade dos mestres - não só intelectualmente como emocionalmente também.
          Tenho feito muito disso: tentar imitar a mentalidade daqueles que considero “mestres”.
E isso não tem nada a ver com ser uma pessoa do tipo “influenciável”...
Então, se você quer ser um hacker, repita as seguintes coisas até que você acredite nelas:
1. O mundo está repleto de problemas fascinantes esperando para serem resolvidos.
         Ser hacker é muito divertido, mas é um tipo de diversão que necessita de muito esforço. Para haver esforço é necessário motivação. Atletas de sucesso retiram sua motivação de uma espécie de prazer físico em trabalhar seus corpos, em tentar ultrapassar seus próprios limites físicos. Analogamente, para ser um hacker você precisa ter uma emoção básica em resolver problemas, afiar suas habilidades e exercitar sua inteligência. Se você não é o tipo de pessoa que se sente assim naturalmente, você precisará se tornar uma para ser um hacker. Senão, você verá sua energia para "hackear" sendo esvaída por distrações como sexo, dinheiro e aprovação social.

         Aqui é apresentado implicitamente outro objetivo do artigo: mostrar que, na verdade, isso não é uma coisa para “qualquer um” porque exige muito sacrifício e esforço, que poucos estão dispostos a fazer. Essas coisas colocadas como “distrações” são os objetivos de vida de 95% das pessoas...

Eu não tenho a pretensão de querer seguir essa vida de hacker, nerd ou qualquer coisa do tipo, apenas estou comentando o artigo que achei interessante. Procuro saber alguma coisa de programação, pois acho que isso é útil; afinal é ruim quando quero algum programa para fazer certa tarefa e não o encontro "pronto" na Internet; também busco saber coisas relevantes sobre assuntos diversos.
(Você também tem que desenvolver uma espécie de fé na sua própria capacidade de aprendizado - crer que, mesmo que você não saiba tudo o que precisa para resolver um problema, se souber uma parte e aprender a partir disso, conseguirá aprender o suficiente para resolver a próxima parte - e assim por diante, até que você termine.)
Isso eu acho que tenho, de sobra...
Na verdade, essa "fé" é a coisa mais importante para se resolver algum problema ou superar alguma situação adversa - por mais difícil que seja. Sem isso é impossível fazer qualquer coisa. Quem nunca ou ouviu dizer que "a fé move montanhas"?
2. Não se deve resolver o mesmo problema duas vezes.
         Mentes criativas são um recurso valioso e limitado. Não devem ser desperdiçadas reinventando a roda quando há tantos problemas novos e fascinantes por aí.
Para se comportar como um hacker, você tem que acreditar que o tempo de pensamento dos outros hackers é precioso - tanto que é quase um dever moral compartilhar informação, resolver problemas e depois dar as soluções, para que outros hackers possam resolver novos problemas ao invés de ter que se preocupar com os antigos indefinidamente. (Você não tem que acreditar que é obrigado a dar toda a sua produção criativa, ainda que hackers que o fazem sejam os mais respeitados pelos outros hackers. Não é inconsistente com os valores do hacker vender o suficiente da sua produção para mantê-lo alimentado e pagar o aluguel e computadores. Não é inconsistente usar suas habilidades de hacker para sustentar a família ou mesmo ficar rico, contanto que você não esqueça que é um hacker.)
         Um adendo: cuidado com quem compartilha as informações: se, por exemplo, você descobre uma falha na segurança de algum sistema, repasse isso a alguém que você tenha certeza que não usará isso com más intenções. O mundo está cheio de lobos em peles de cordeiros.
3. Tédio e trabalho repetitivo são nocivos.
         Hackers (e pessoas criativas em geral) não podem ficar entediadas ou ter que fazer trabalho repetitivo, porque quando isso acontece significa que eles não estão fazendo o que apenas eles podem fazer - resolver novos problemas. Esse desperdício prejudica a todos. Portanto, tédio e trabalho repetitivo não são apenas desagradáveis, mas nocivos também.
Para se comportar como um hacker, você tem que acreditar nisso de modo a automatizar as partes chatas tanto quanto possível, não apenas para você como para as outras pessoas (principalmente outros hackers).
(Há uma exceção aparente a isso. Às vezes, hackers fazem coisas que podem parecer repetitivas ou tediosas para um observador, como um exercício de "limpeza mental", ou para adquirir uma habilidade ou ter uma espécie particular de experiência que não seria possível de outro modo. Mas isso é por opção - ninguém que consiga pensar deve ser forçado ao tédio.
         As pessoas normalmente consideram o trabalho como algo tedioso. Eu acho que cada um deve buscar fazer da vida aquilo que goste, ou estará perdendo tempo. Claro que isso depende de esforço e oportunidades. Busque trabalhar em alguma coisa pela qual seja apaixonado, e nunca precisará “trabalhar” um único dia na sua vida.
4. Liberdade é uma coisa boa.
         Hacker é naturalmente anti-autoritário. Qualquer pessoa que lhe dê ordens pode impedi-lo de resolver qualquer que seja o problema pelo qual você está fascinado - e, dado o modo como que a mente autoritária funciona, geralmente arranjará alguma desculpa espantosamente idiota para isso. Então, a atitude autoritária deve ser combatida onde quer que você a encontre, para que não sufoque a você e a outros hackers.
(Isso não é a mesma coisa que combater toda e qualquer autoridade. Crianças precisam ser orientadas, e criminosos, detidos. Um hacker pode aceitar alguns tipos de autoridade a fim de obter algo que ele quer mais que o tempo que ele gasta seguindo ordens. Mas isso é uma barganha restrita e consciente; não é o tipo de sujeição pessoal que os autoritários querem.)
         Pessoas autoritárias prosperam na censura e no segredo. E desconfiam de cooperação voluntária e compartilhamento de informação - só gostam de "cooperação" que eles possam controlar. Então, para se comportar como um hacker, você tem que desenvolver uma hostilidade instintiva à censura, ao segredo, e ao uso da força ou mentira para compelir adultos responsáveis. E você tem que estar disposto a agir de acordo com esta crença.
          Lembrei-me agora daqueles manés que querem a volta da ditadura. Isso é só um exemplo. Autoritarismo é coisa do passado; do tempo da monarquia e da escravidão.
5. Atitude não substitui competência.
         Para ser um hacker, você tem que desenvolver algumas dessas atitudes. Mas apenas ter uma atitude não fará de você um hacker, assim como não o fará um atleta campeão ou uma estrela de rock. Para se tornar um hacker é necessário inteligência, prática, dedicação, e trabalho duro.
         Portanto, você tem que aprender a desconfiar de atitude e respeitar todo tipo de competência. Hackers não deixam posers gastar seu tempo, mas eles idolatram competência - especialmente competência em "hackear", mas competência em qualquer coisa é boa. A competência em habilidades que poucos conseguem dominar é especialmente boa, e em habilidades que envolvem agudeza mental, perícia e concentração é a melhor.
         Se você reverenciar competência, gostará de desenvolvê-la em si mesmo - o trabalho duro e a dedicação se tornarão uma espécie de um intenso jogo, ao invés de trabalho repetitivo. E isso é vital para se tornar um hacker.
Nada substitui competência. E  imagino que a competência vem com a dedicação...

Habilidades básicas do hacker
     A atitude hacker é vital, mas habilidades são ainda mais vitais. Atitude não substitui competência, e há um certo conjunto de habilidades que você precisa ter antes que um hacker sonhe em lhe chamar de um.
Esse conjunto muda lentamente com o tempo, de acordo com a criação de novas habilidades. Por exemplo, costumava incluir programação em linguagem de máquina, e até recentemente não incluía HTML. Mas agora é certo que inclui o seguinte:
1. Aprenda a programar.
         Essa é, claro, a habilidade básica do hacker. Em 1997, a linguagem que você absolutamente precisa aprender é C (apesar de não ser a que você deve aprender primeiro). Mas você não é um hacker e nem mesmo um programador se você souber apenas uma linguagem - você tem que aprender a pensar sobre problemas de programação de um modo geral, independentemente de qualquer linguagem. Para ser um hacker de verdade, você precisa ter chegado ao ponto de conseguir aprender uma nova linguagem em questão de dias, relacionando o que está no manual ao que você já sabe. Isso significa que você deve aprender várias linguagens bem diferentes.
         Além de C, você também deve aprender pelo menos LISP e Perl (e Java está tentando pegar um lugar nessa lista). Além de serem as linguagens mais importantes para hackear, cada uma delas representa abordagens à programação bem diferentes, e todas o educarão em pontos importantes.
Eu não posso lhe dar instruções completas sobre como aprender a programar aqui -- é uma habilidade complexa. Mas eu posso lhe dizer que livros e cursos também não servirão (muitos, talvez a maioria dos melhores hacker são autodidatas).
O que servirá é (a) ler código e (b) escrever código.
         Aprender a programar é como aprender a escrever bem em linguagem natural. A melhor maneira é ler um pouco dos mestres da forma, escrever algumas coisas, ler mais um monte, escrever mais um monte, ler mais um monte, escrever... e repetir até que seu estilo comece a desenvolver o tipo de força e economia que você vê em seus modelos.
Achar um bom código para ler costumava ser difícil, porque havia poucos programas grandes disponíveis em código-fonte para que hackers novatos pudessem ler e mexer. Essa situação mudou dramaticamente; open-source software (software com código-fonte aberto), ferramentas de programação, e sistemas operacionais (todos feitos por hackers) estão amplamente disponíveis atualmente.
         Por exemplo, neste blog estou “treinando” tanto a escrita, como a mexer em código HTML...
Faço exatamente isso: ler um pouco, escrever mais um pouco, etc.
2. Pegue um dos Unixes livres e aprenda a mexer.
        Estou assumindo que você tem um computador pessoal ou tem acesso a um (essas crianças de hoje em dia têm tão facilmente :-)). O passo mais importante que um novato deve dar para adquirir habilidades de hacker é pegar uma cópia do Linux ou de um dos BSD-Unixes, o instalar em um PC, e rodá-lo.
Sim, há outros sistemas operacionais no mundo além do Unix. Porém, eles são distribuídos em forma binária - você não consegue ler o código, e você não consegue modificá-lo. Tentar aprender a "hackear" em DOS, Windows ou MacOS é como tentar aprender a dançar com o corpo engessado.
         Além disso, Unix é o sistema operacional da Internet. Embora você possa aprender a usar a Internet sem conhecer Unix, você não pode ser um hacker sem entendê-lo. Por isso, a cultura hacker, atualmente, é fortemente centralizada no Unix. (Não foi sempre assim, e alguns hackers da velha guarda não gostam da situação atual, mas a simbiose entre o Unix e a Internet se tornou tão forte que até mesmo o músculo da Microsoft não parece ser capaz de ameaçá-la.)
         Então, pegue um Unix - eu gosto do Linux, mas existem outros caminhos. Aprenda. Rode. Mexa. Acesse a Internet através dele. Leia o código. Modifique o código. Você terá ferramentas de programação (incluindo C, Lisp e Perl) melhores do qualquer sistema operacional da Microsoft pode sonhar em ter; você se divertirá, e irá absorver mais conhecimento do que perceber, até que você olhará para trás como um grande mestre hacker.
         Eu já fiz isso (usando uma máquina virtual), mas usar aquelas ferramentas de desenvolvimento realmente requer muito tempo e paciência. Estou comentando esse texto de modo geral, tentando fazer analogias daquilo que está contido aqui com outras coisas que não dizem respeito a computadores.
         E o que eu poderia tirar daqui? Bom, que a única forma de obter conhecimento efetivamente, em qualquer coisa, não é apenas lendo livros e apostilas. É preciso colocar a mão na massa, praticar, fazer “exercícios”. Confúcio já disse que “aprender sem raciocinar é tempo perdido”...
(Atualmente, a Microsoft possui uma linguagem de programação própria que pode servir para os iniciantes aprenderem o "be-a-bá" da programação e se familiarizarem com ela.)

3. Aprenda a usar a World Wide Web e escrever em HTML.
         A maioria das coisas que a cultura hacker tem construído funciona "invisivelmente", ajudando no funcionamento de fábricas, escritórios e universidades sem nenhum impacto óbvio na vida dos não-hackers.
         Isso não significa apenas aprender a mexer em um browser (qualquer um faz isso), mas aprender a programar em HTML, a linguagem de markup da Web. Se você não sabe programar, escrever em HTML lhe ensinará alguns hábitos mentais que o ajudarão. Então faça uma home page.
         Mas apenas ter uma home page não chega nem perto de torná-lo um hacker. A Web está repleta de home pages. A maioria delas é inútil, porcaria sem conteúdo.
        Para valer a pena, sua página deve ter conteúdo - deve ser interessante e/ou útil para outros hackers. E isso nos leva ao próximo assunto...
Bom, seria muita pretensão esperar que o conteúdo desta minha página possa ser um dia considerado útil por algum hacker...
        Falando no funcionamento “invisível” das coisas dos hackers, isso é uma coisa realmente fascinante: são necessárias muitas soluções brilhantes para problemas, muita dedicação, trabalho e inteligência sem esperar por “glamour” ou reconhecimento por parte dos usuários. Bem o contrário do que a maioria das pessoas busca...
Status na Cultura Hacker
         Como a maioria das culturas sem economia monetária, a do hacker se baseia em reputação. Você está tentando resolver problemas interessantes, mas quão interessantes eles são, e se suas soluções são realmente boas, é algo que somente seus iguais ou superiores tecnicamente são normalmente capazes de julgar.
         Conseqüentemente, quando você joga o jogo do hacker, você aprende a marcar pontos principalmente pelo que outros hackers pensam da sua habilidade (por isso você não é hacker até que outros hackers lhe chamem assim). Esse fato é obscurecido pela imagem solitária que se faz do trabalho do hacker; e também por um tabu hacker-cultural que é contra admitir que o ego ou a aprovação externa estão envolvidas na motivação de alguém.
         Especificamente, a cultura hacker é o que os antropologistas chamam de cultura de doação. Você ganha status e reputação não por dominar outras pessoas, nem por ser bonito, nem por ter coisas que as pessoas querem, mas sim por doar coisas. Especificamente, por doar seu tempo, sua criatividade, e os resultados de sua habilidade.
Há basicamente cinco tipos de coisas que você pode fazer para ser respeitado por hackers:
         A reputação em atividades consideradas mais “nobres” se baseia em valores diferentes daquilo que normalmente dá pontos de status na sociedade como, por exemplo: dominar outras pessoas, ser bonito, ter coisas que as pessoas querem...
1. Escrever open-source software.
         O primeiro (o mais central e mais tradicional) é escrever programas que outros hackers achem divertidos ou úteis, e dar o código-fonte para que toda a cultura hacker use.
(Nós costumávamos chamar isto de "free software", mas isso confundia muitas pessoas que não sabiam ao certo o significado de "free". Agora, muitos de nós preferem o termo "open-source" software).
[Nota do tradutor: "free" significa tanto "livre" como "gratuito", daí a confusão. O significado que se pretende é "livre".] Os "semideuses" mais venerados da cultura hacker são pessoas que escreveram programas grandes, competentes, que encontraram uma grande demanda e os distribuíram para que todos pudessem usar.
         Sim, quanto mais útil o conteúdo produzido, mais créditos ganha o autor. Mas cuidado para que ninguém roube a sua ideia...
2. Ajude a testar e depurar open-source software
         Também estão servindo os que depuram open-source software. Neste mundo imperfeito, inevitavelmente passamos a maior parte do tempo de desenvolvimento na fase de depuração. Por isso, qualquer autor de open-source software que pense lhe dirá que bons beta-testers (que saibam descrever sintomas claramente, localizar problemas, tolerar bugs em um lançamento apressado, e estejam dispostos a aplicar algumas rotinas de diagnóstico) valem seu peso em ouro. Até mesmo um desses beta-testers pode fazer a diferença entre uma fase de depuração virar um longo e cansativo pesadelo, ou ser apenas um aborrecimento saudável. Se você é um novato, tente achar um programa sob desenvolvimento em que você esteja interessado e seja um bom beta-tester. Há uma progressão natural de ajudar a testar programas para ajudar a depurar e depois ajudar a modificá-los. Você aprenderá muito assim, e criará um bom karma com pessoas que lhe ajudarão depois.
         Hoje temos as versões “demo” de programas, exatamente para depurá-los. Usa-se por um período, normalmente um mês e, se quiser usar por mais tempo, há que se comprar uma licença. Se o programa for realmente útil, muitos usuários vão apontar os problemas para depois comprar a versão melhorada.
3. Publique informação útil.
         Outra boa coisa a se fazer é coletar e filtrar informações úteis e interessantes em páginas da Web ou documentos como FAQs ("Frequently Asked Questions lists", ou listas de perguntas freqüentes), e torne-os disponíveis ao público.
Mantenedores de grandes FAQs técnicos são quase tão respeitados quanto autores de open-source software.
Eu acho que um excelente exemplo disso (filtrar as informações da Internet) é o site do E-farsas.
4. Ajude a manter a infraestrutura funcionando.
        A cultura hacker (e o desenvolvimento da Internet, quanto a isso) é mantida por voluntários. Existe muito trabalho sem glamour que precisa ser feito para mantê-la viva - administrar listas de email, moderar grupos de discussão, manter grandes sites que armazenam software, desenvolver RFCs e outros padrões técnicos.
Pessoas que fazem bem esse tipo de coisa são muito respeitadas, porque todo mundo sabe que esses serviços tomam muito tempo e não são tão divertidos como mexer em código. Fazê-los mostra dedicação.
        Na verdade, paradoxalmente, em atividades dos mais altos níveis (que envolvem ciência e estudo), é inútil fazer qualquer coisa esperando “glamour”. Porque são coisas que, embora sirvam à sociedade, quem se dedica ao estudo é visto pela maioria como um “nerd” ou algo do tipo e, muitas vezes é hostilizado (embora isso esteja mudando). Talvez porque, inconscientemente, o povo sabe que se o sujeito não ficar rico, pelo menos terá um futuro.
5. Sirva a cultura hacker em si.
         Finalmente, você pode servir e propagar a cultura em si (por exemplo, escrevendo um apurado manual sobre como se tornar um hacker :-)). Você só terá condição de fazer isso depois de ter estado por aí por um certo tempo, e ter se tornado conhecido por uma das primeiras quatro coisas.
A cultura hacker não tem líderes, mas têm seus heróis culturais, "chefes tribais", historiadores e porta-vozes. Depois de ter passado tempo suficiente nas trincheiras, você pode ser tornar um desses. Cuidado: hackers desconfiam de egos espalhafatosos em seus "chefes tribais", então procurar visivelmente por esse tipo de fama é perigoso. Ao invés de se esforçar pela fama, você tem que de certo modo se posicionar de modo que ela "caia" em você, e então ser modesto e cortês sobre seu status.
         Qualquer um que caia na armadilha de buscar ansiosamente por fama, status e prestígio está “pedindo” para ser desprezado.
A Conexão Hacker/Nerd
         Contrariamente ao mito popular, você não tem que ser um nerd para ser um hacker. Ajuda, entretanto, e muitos hackers são de fato nerds. Ser um proscrito social o ajuda a se manter concentrado nas coisas realmente importantes, como pensar e "hackear".
Por isso, muitos hackers adotaram o rótulo "nerd", e até mesmo usam o termo (mais duro) "geek" como um símbolo de orgulho - é um modo de declarar sua independência de expectativas sociais normais.
         Se você consegue se concentrar o suficiente em hackear para ser bom nisso, e ainda ter uma vida, está ótimo. Isso é bem mais fácil hoje do que quando era um novato nos anos 70; atualmente a cultura mainstream é muito mais receptiva a tecno-nerds. Há até mesmo um número crescente de pessoas que percebem que hackers são, freqüentemente, amantes e cônjuges de alta qualidade.
         Se hackear o atrai porque você não vive, tudo bem - pelo menos você não terá problemas para se concentrar. Talvez você consiga uma vida normal depois.
Isso reforça aquilo que eu disse sobre o fato de isso não ser algo para “qualquer um”, sobretudo por exigir esforço e sacrifício que poucos estão dispostos a fazer, e há uma discrepância entre aquilo que agrega valor nas coisas de hacker/nerd (fora dos padrões e convenções sociais, fora de moda) e as coisas fúteis e banais consideradas “normais” pela sociedade. 
"Se hackear o atrai porque você não vive", essa foi a ironia da década...
Pontos sobre estilo
         Para ser um hacker, você tem que entrar na mentalidade hacker. Há algumas coisas que você pode fazer quando não estiver na frente de um computador e que podem ajudar. Não substituem o ato de hackear (nada substitui isso), mas muitos hackers as fazem, e sentem que elas estão ligadas de uma maneira básica com a essência do hacking.
         Leia ficção científica. Frequente convenções de ficção científica (uma boa maneira de encontrar hackers e proto-hackers).
Uma das coisas que me fascinam: ficção científica...
Dizem que a vida imita a arte.
         Estude o Zen, e/ou faça artes marciais. (A disciplina mental parece similar em pontos importantes).
Há muito tempo fiz um pouco de artes marciais, mas já parei...
         Desenvolva um ouvido analítico para música. Aprenda a apreciar tipos peculiares de música. Aprenda a tocar bem algum instrumento musical, ou a cantar.
Eu não sei tocar nenhum instrumento musical, mas sou bem seletivo para música. Já tentei aprender a cantar, mas não tenho talento para isso. Daí fica difícil...
         Desenvolva sua apreciação de trocadilhos e jogo de palavras.
Com certeza, isso é uma coisa natural em mim...
         Aprenda a escrever bem em sua língua nativa. (Um número surpreendente de hackers, incluindo todos os melhores que eu conheço, são bons escritores.)
Eu posso até cometer alguns erros, ninguém é perfeito, mas tento constantemente superar minhas limitações. Modéstia à parte, não acho que eu vá cometer algum erro “crasso” como muitos que vejo por aí...
Já vi alguns que, acho que se forem fazer alguma prova de "marcar X", até nisso trocariam o x por ch.
         Quanto mais dessas coisas você já fizer, mais provável que você seja "matéria-prima" para um hacker. Por que essas coisas em particular não são completamente claras, mas elas são ligadas com uma mistura de habilidades dos lados esquerdo e direito do cérebro que parece ser muito importante (hackers precisam ser capazes de tanto raciocinar logicamente quanto pôr de lado, de uma hora para outra, a lógica aparente do problema).
Talvez eu seja uma boa matéria-prima para isso; mas não tenho tempo nem disposição para seguir essa vida de modo contumaz. O que procuro fazer é aprender algumas coisas que possam ser úteis.
Finalmente, algumas coisas a não serem feitas.
         Não use um nome de usuário ou pseudônimo bobo e grandioso.
Bom, aí depende do conceito que se tenha do que seria algo “bobo e grandioso”. Isso é muito relativo. O que pega mal mesmo é usar coisas como alusão a modinhas, a artistas de gêneros musicais de gosto duvidoso, etc...
O pior é que tenho visto muito disso.
         Não entre em flame wars ("guerrinhas") na Usenet (ou em qualquer outro lugar).
Uma das razões pelas quais eu não aceito “provocações” por comentários neste blog; eu não vou responder a um comentário ADVERSO iniciando uma longa discussão, baixando o nível e poluindo o site. Eu simplesmente apago o comentário em questão e, dependendo do caso, o coloco em uma postagem posterior com a devida resposta. É aquela velha história: “não alimente os trolls”.
         Não se auto-intitule um "cyberpunk", e não perca seu tempo com alguém que o faça.
Realmente, fazer isso “força a amizade”, é um nome de usuário bem tosco. Mas acho que alguém que leia isto talvez veja nesse termo um perfeito pseudônimo...
         Não poste ou escreve e-mail cheio de erros de ortografia e gramática.
Atualmente, posso acrescentar: procure não postar no Facebook/Twitter/Instagram coisas cheias de erros de ortografia. A não ser para quem não vê problemas em ser reputado como um ignorante. Os hackers veem tudo e sabem quem está atrás do monitor.
         A única reputação que você conseguirá fazendo alguma dessas coisas é a de um twit [um chato, geralmente filtrado nos grupos de discussão]. Hackers têm boa memória - pode levar anos antes que você se reabilite o suficiente para ser aceito.
Eu também acho que tenho uma boa memória; não apenas com as coisas citadas anteriormente, mas para qualquer “pisada na bola” que alguém dê comigo é necessário muito tempo depois para se “reabilitar”. Ou talvez nunca mais isso seja possível, dependendo do caso...
         Desde que publiquei essa página, recebi vários pedidos por semana de pessoas querendo que eu "ensinasse tudo sobre hacking". Infelizmente, eu não tenho tempo nem energia para isso; meus próprios projetos hackers tomam 110% do meu tempo. 
         Mesmo se eu fizesse, hacking é uma atitude e uma habilidade na qual você tem que basicamente ser autodidata. Você verá que, embora hackers de verdade queiram te ajudar, eles não o respeitarão se você pedir "mastigado" tudo que eles sabem. Aprenda algumas coisas primeiro. Mostre que você está tentando, que você é capaz de aprender sozinho. Depois faça perguntas aos hackers que encontrar.
         Realmente, esse é o problema de muitas pessoas: querer tudo fácil, “mastigado”. Quando veem alguém “de sucesso” aos seus olhos, não imaginam o quanto de dedicação e trabalho duro essa pessoa precisou fazer para “chegar lá”. Complementando, é daí que nasce a inveja: a pessoa querer o que você tem, mas sem precisar pagar o preço que você pagou.
         Quando li esse artigo pela primeira vez (há uns 15 anos), eu não estava muito familiarizado com computadores e o jargão utilizado pelo autor. Naquele tempo, alguém ter um computador já era "privilégio", acesso à Internet nem se fala. Por isso, alguma coisa fiquei sem entender a princípio.  Mas hoje isso está completamente claro; fiquei impressionado com a forma como esse autor escreve e se expressa muito bem. A revista eu tinha ganhado de um parente que se interessa por essas coisas.
O autor também escreveu alguns livros, como A Catedral e o Bazar.

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